A perigosa arte de enganar
25 de Maio/Terça Feira

Alguns divertimentos infantis são universais. Um dos que mais gostávamos, e que nos entretinha muito, chamávamos de esconde-esconde. Consistia em esconder do restante dos amigos de tal maneira que ninguém conseguisse nos descobrir. Hoje, depois de crescido, surpreendo-me que essa brincadeira seja comum também entre os adultos. Aliás, parece que gente grande gosta mais de brincar de esconde-esconde que as crianças. Só que agora, o jogo é mais perigoso.

O poeta e a mentira
Mentimos, enganamos e dissimulamos. Criamos mecanismos que nos escondem de nós mesmos, do próximo e de Deus. Fernando Pessoa olhou para sua própria vida e não se reconheceu no que foi; escondera-se por detrás de máscaras e, corajoso, desabafou:

“Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje, não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu...
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.”

Eduardo Giannetti, que escreveu um excelente livro com o título Auto-Engano (Companhia das Letras), comentou sobre esta poesia de Fernando Pessoa: “A experiência do poeta dramatiza e leva ao extremo uma possibilidade que é comum a todos: será minha esta vida?” Pessoa, de tanto dissimular, de tanto usar máscaras, já não se encontrava. Laconicamente, concluiu que não era quem sempre tentou ser, e agora não possuía mais forças para tentar ser outra pessoa. A máscara estava pegada à cara.

O autor do Eclesiastes buscou descobrir-se e, cansado, declarou: “Pelo que aborreci a vida, pois me foi penosa a obra que se faz debaixo do sol; sim, tudo é vaidade e correr atrás do vento” (2.17). Jeremias, também exausto de lidar com tantos engodos e artifícios de dissimulação, perguntou: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto, quem o conhecerá?” (17.9).

A mentira e a história
Os artifícios da dissimulação e do auto-engano não acontecem somente nos indivíduos. Países como a União Soviética do expurgo stalinista, a Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, e a Argentina do regime militar demonstram claramente que a arte da dissimulação pode ser globalizada.

O próprio cristianismo já sucumbiu várias vezes à mentira. Acreditava-se que as Cruzadas eram legítimos esforços para resgatar os monumentos cristãos. Hoje, sabe-se que haviam outros interesses por detrás daquelas empreitadas malucas. O mesmo pode ser dito da Inquisição, da terrível perseguição que os anabatistas e pietistas sofreram na Europa, e assim por diante. Matou-se muito em nome de Deus.

Quando houve eleição para a última constituinte, mentiu-se. Várias igrejas acreditaram na versão enganosa de alguns candidatos evangélicos: haveria uma conspiração católica para aprovar uma Constituição discrimi-natória, favorecendo a Igreja de Roma. Depois, na eleição para presidente, ouviu-se que determinado candidato mandaria fechar igrejas e reinstituir o comunismo no Brasil. Os evangélicos votaram maciçamente naquele que acabou eleito. As conseqüências dessa mentira quase levaram o país a um impasse institucional, com o impeachment do presidente da República.

Fugindo do engano
Há meios de nos salvaguardarmos do auto-engano pessoal ou coletivo. Permitam-me algumas pistas:

Necessitamos de uma idéia menos divina e mais humana de nós mesmos. A pregação evangélica desses últimos dias vem tão repleta de arroubos triunfalistas, que um novo cristão pensa nunca ter um revés em sua vida. Doenças, desempregos, tristezas, mortes prematuras e inúmeros desapontamentos são varridos para debaixo do tapete religioso, levando as pessoas a viverem uma farsa: os crentes estão imunes ao sofrimento. Com adesivos nos vidros dos automóveis, caixinhas de promessas com versículos fora de contexto e sermões superficiais, vai se disseminando uma mensagem cristã distorcida. As igrejas já não têm espaço para os que sofrem, faltam-lhes a mensagem de consolo. Despreza-se que doenças, pobreza, mortes prematuras participam dos relatos bíblicos e da vida dos seus personagens em proporção maior que curas, riqueza e arrebatamentos espirituais. Oxalá as igrejas evangélicas não se esquecessem de que na conversão não nos tornamos anjos, apenas pecadores justificados pela graça. Pensar o contrário é enganar-se diante de um espelho torto.

Necessitamos rever nosso conceito de fé. Ele também pode gerar auto-engano. Proponho que, antes de ser uma força dirigida a Deus, que o impulsiona a fazer aquilo em que estaria hesitante, fé deve ser entendida como uma confiança inabalável em seu caráter. Essa noção de fé como um poder gera o sentimento errado de que algumas pessoas têm uma oração mais poderosa que a de outras. Crentes juram que alcançaram respostas às suas petições porque receberam a “oração forte” de algum líder religioso. Isso gera uma espiritualidade que busca a Deus para aumentar a força da fé, nunca para ter maior intimidade com Ele. Enganam-se os que pensam ter maior cacife espiritual porque conseguiram arrancar de Deus um maior número de respostas aos seus pedidos. Multidões se iludem com a possibilidade de que, se aprenderem a fórmula correta de se dirigir a Deus, vão galgar maior poder espiritual.

Há conseqüências desastrosas em acreditar-se mais “espiritual” que os demais. Além de ofender a Deus, promover um messianismo patético, isoo gera uma espiritualidade utilitária. Deus passa a ser apenas um meio, uma força domesticada. Isso confirma a ilusão luciferiana do Éden: “somos deuses. Podemos induzir a divindade a agir de acordo com nossos desejos”.

Quem está de pé...
Por último, não podemos acreditar que erros, heresias e muita incoerência só aconteceram no passado. Criticamos os acontecimentos vergonhosos da Igreja em séculos passados e não aceitamos que podemos cometer deslizes tão feios quanto aqueles. A falsa noção de que possuímos uma revelação mais elevada que a de Pedro, Paulo e alguns dos pais apostólicos pode ser letal. Se a soberba precede a queda, achar que nos encontramos acima do fracasso já nos faz vulneráveis a ele — quem está em pé, veja que não caia. Não somos os escolhidos da última hora nem temos uma graça incomum. O perigo de sermos jogados na outra extremidade da decepção e do imobilismo é grande, já que ninguém consegue evitar o tropeço. E se não estivermos preparados para nossos próprios fracassos, nos afogaremos no oceano da culpa e auto-comiseração. Giannetti nos adverte: “Quando o mar encrespa e o céu interno fecha, a inflação moral pode virar forte deflação. O estado depressivo da mente leva um homem a ficar privado daquele modicum de boa vontade, apreço e respeito por si mesmo que torna a consciência de si aprazível. O deprimido vive como um pária na sarjeta de sua convivência interna [‘Não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu’], e sua mente é capaz de dar crédito sincero às mais sombrias e dolorosas recriminações e confabulações íntimas acerca de si.” O refluxo de tanto ufanismo pode, no futuro, causar uma enorme depressão.

O salmista perguntou: “Quem há que possa discernir as próprias faltas?” (19.12). Também pediu: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração: prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho eterno” (139.23-24). Percebe-se que os mecanismos de auto-engano e da dissimulação são muito sutis. Portanto, esvaziemo-nos de nossa auto-suficiência. Busquemos a verdadeira renovação espiritual, promovida pelo Espírito Santo. Só Ele esquadrinha o coração, prova os pensamentos, e dá a cada um segundo o seu proceder, segundo o fruto de suas ações.

A Igreja evangélica necessita de uma nova Reforma. Desçamos de qualquer pedestal da arrogância e da auto-suficiência, e deixemos que a luz perscrutadora do Espírito penetre em todas as câmaras de nosso viver. Só assim poderemos nos imaginar noiva do Cordeiro, sem ruga e sem mácula.

Soli Deo Gloria.
Autor: Ricardo Gondim


Fonte: http://www.ultimato.com.br Related Posts with Thumbnails
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