Eunucos: Ora, bolas! (Parte 2)
30 de Junho/Quarta Feira

por Eliza Muto e Roberto Navarro

Mil e uma noites

“A imagem que fazemos dos eunucos dos reinos muçulmanos é a daqueles escravos negros prostrados nas portas dos haréns, mas no Império Otomano, desde o século 7, eles exerceram todo tipo de função, desde zeladores de mesquitas até administradores e professores”, diz o historiador David Ayalon, autor de Eunuchs, Caliphs and Sultans: A Study of Power Relationships (“Eunucos, Califas e Sultões: Um Estudo de Relações de Poder”, sem versão em português). Segundo ele, os escravos vindos da Europa oriental, da Ásia e, principalmente, da África eram castrados em território não islâmico, na crença de que isso mantinha a terra muçulmana pura. Para efetuar o trabalho, alguns centros especializados em castração foram criados nas fronteiras do território otomano. Especializados, nesse caso, é maneira de dizer, já que não passavam de locais improvisados, onde os próprios comerciantes de escravos, ou às vezes seus captores, faziam a cirurgia, que podia até variar de método, mas era sempre dolorosa e potencialmente mortal. Em alguns lugares, o procedimento consistia em abrir o escroto com uma lâmina e apenas retirar os testículos. Noutros, tudo era retirado. Poucos dias depois, os escravos eram entregues a seus novos donos: os sultões.

Geralmente, os escravos vindos do norte da África tinham o pênis inteiro retirado. O que, na hierarquia do harém, acabava sendo um privilégio, já que só os eunucos nessa condição podiam atuar como guardiões do leito e ficar longe do trabalho pesado. Eram eles que levavam a concubina aos aposentos do sultão e os únicos homens que podiam entrar no harém no caso de emergência. “Os mais antigos chegavam a atingir o posto de kizlar agha, uma espécie de terceiro homem do império – abaixo apenas do sultão e do califa –, exercendo grande poder político na corte”, diz Ayalon.

Família soprano

No Ocidente, os eunucos mais famosos, ricos e poderosos foram os castrati, cantores que brilharam nas cortes européias dos séculos 17 e 18. Recrutados entre filhos de camponeses e artesãos ou em orfanatos, eles eram castrados na infância para manter intactos seus timbres agudos de voz e passavam a viver sob a proteção da nobreza e do clero. “Os sopranos masculinos eram as estrelas do canto barroco e das óperas”, diz o historiador Patrick Barbier, autor de História dos Castrati. Segundo ele, os eunucos-cantores ganharam os palcos europeus, tendo à sua volta um séquito de reis, papas, nobres e artistas. Mozart, por exemplo, utilizou a voz cristalina desses cantores para interpretar suas criações, até que se cansou das exigências de algumas estrelas, como Farinelli. Considerado o maior entre todos os cantores castrados, ele se tornou amigo próximo do rei Filipe V, da Espanha, onde chegou a exercer funções políticas nada desprezíveis.

Uma especificidade dos castrati era que deles somente os testículos eram extirpados pelo médico ou barbeiro, que na época eram a mesma pessoa. Segundo Barbier, a maioria podia inclusive ter relações sexuais mais ou menos normais, já que a castração não impedia a ereção nem a emissão de esperma. Nesse caso, a mais afetada (sem trocadilhos) era a aparência. Castrados muito jovens desenvolviam uma estrutura muscular próxima da feminina, com depósitos de gordura nos quadris, coxas e pescoço e ausência de pêlos. Outro problema era o interesse sexual. Sem a testosterona produzida pelos testículos, era difícil ter algum apetite pelo assunto. Apesar disso, alguns ficaram mais famosos pelas estripulias sexuais do que por sua voz e viraram ídolos das mulheres, que protagonizavam cenas de histeria dignas das fãs de Michael Jackson. Um deles, Rauzzini, chegou a posar para grandes artistas da época e virou uma espécie de cantor-modelo-manequim do século 18, mais conhecido pela beleza do que pela voz.

No fim do século 18, no entanto, a Igreja, acuada com a questão moral da castração, começou a reagir, condenando, ainda que de maneira velada, a mutilação dos jovens. E a Europa também já mostrava sinais de indignação com a prática, particularmente os filósofos do Iluminismo. Jean-Jacques Rousseau se levantou contra os “pais bárbaros” que “entregam os filhos para o prazer de gente voluptuosa e cruel.” Por fim, em 1902, o papa Leão XIII proibiu a utilização de castrati na música sacra. E, aos poucos, os eunucos-cantores foram desaparecendo.

Fonte: http://historia.abril.com.br/

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